Quem sabe não consigamos fazer o novo acontecer em nós, no mundo e em nosso País?
Aos 16 anos ganhei um piano que pertenceu a uma senhora de uma família tradicional da cidade que ensinava música e boas maneiras. Ela se chamava Clarice. Era alta, esguia e de uma classe invejável. Seus trajes chamavam a atenção pela composição perfeita com os modernos sapatos coloridos. Uma inovação e tanto para a época. Fui sua aluna e não me esqueço de sua figura.
Certo dia, desejando terminar a música ela me interrompeu: “Minha menina, a música não tem fim. Ela é sempre uma nova versão de si mesma. A versão daquele momento, do artista e do intérprete, do sonho e do encantamento de quem toca. Tocar exige reflexão e uma intenção pessoal. Um algo a mais que buscamos fazer surgir naquele exato instante. É como se buscássemos fazer um sonho se tornar real”.
E me perguntou: “Você tem sonhos?”
– Sim, respondi.
– Então, traga-os para este momento.
E aproveitou para me dar um conselho: “Minha menina, nunca os deixe de lado. Durante toda sua vida busque realizá-los. Não permita que os tirem de você. Agora toque, pensando na beleza de seus sonhos”.
Confesso que não compreendi todas aquelas palavras mas as guardei em mim. Minhas aulas se interromperam na medida que outras prioridades foram surgindo na adolescência. Veio e se foi a juventude e o piano ficou fechado exatamente onde o deixei: na casa da mamãe até que chegou o momento de leva-lo comigo.
Que dificuldade retirá-lo do lugar habitual. Aos que assistiam a cena, tínhamos a impressão de que ele realmente não queria se mover. Enraizara-se naquela casa e na rotina do silêncio e da quase invisibilidade. Passou a viver conformado a ser um móvel.
Enquanto nos esforçávamos para removê-lo, me lembrei da dona Clarice e dos sonhos que vamos deixando pela vida. É, acho que, de certa maneira, desencadeamos na maturidade um processo perigoso de conformidade e vamos nos enraizando, esquecendo o que queríamos ser. Um movimento perigoso de abandono das novas oportunidades que surgem diante de nós.
O piano passou a enfeitar a sala de jantar e certo dia dedinhos longos e inocentes o abriram e tocaram lindas canções. Assim, os anos foram inundados por partituras que voavam pela sala, músicas e sequências repetidas com insistência. A vida se renovou como uma primavera que traz sempre novas cores, um ar fresco e perfumado repleto de possibilidades para estabelecermos novos caminhos, aprendermos a deixar o passado para que o presente possa entrar pela porta da frente.
Talvez esteja na hora de abrirmos o piano da vida e colocarmos os nossos dedos enferrujados para aprendermos uma nova melodia. Vamos escolher a partitura com coerência, coragem e consciência para que a música possa ser tocada com integridade, honestidade e gentileza. Valores que, infelizmente, estamos perdendo na atualidade.
E, ao se aproximar a primavera, vamos buscar entender os textos e os contextos, as entrelinhas, as situações e o não dito. Quem sabe não consigamos fazer o novo acontecer em nós, no mundo e em nosso País?
Lispector nos recorda: “Sejamos como a primavera que renasce cada dia mais bela… Exatamente porque nunca são as mesmas flores.”
Como na música, tudo se resume ao nosso comportamento.
Vamos primaverar e novas flores ser!
Fonte: O livre