O pé de sapato…

(Foto: Divulgação/Pixabay)

A sensação de divisão dos pares é tão nítida que perdemos o senso do todo e nos encaixotamos de acordo com o lado: esquerdo ou direito

Em uma estação de metrô quase deserta e tomada pelo silêncio, um pé de sapato à beira da plataforma observava sozinho os trilhos enquanto aguardava a volta de seu dono. Imóvel, fazia da espera uma canção para um reencontro ainda incerto.

Tomada pela cena me veio à mente as diferentes situações nas quais aquele objeto simboliza muito mais que a solidão da espera. Eles são a própria estória, as testemunhas de fatos e momentos indescritíveis a olho nu. E se cada pé encontra o seu sapato, cada estória, provavelmente, tem o seu.

No conto de fada ele muda a vida de uma plebeia que se torna princesa. Para o recém-nascido, o primeiro modelo é por si só um acontecimento simbólico de existência e de um longo caminho pela frente.

Alguns preenchem o imaginário e inspiram poetas como Pessoa, que fazem dele o objeto central de poucas linhas para relatar as cinzas de sua própria existência. Outros, como Manoel de Barros, esculpindo a palavra pisa o rio com os seus pares para lhe dar cor. O ilustre Machado de Assis os engraxava na juventude para sobreviver.

Entretanto, existe uma imensa pilha deles que testemunharam enormes tragédias da humanidade. Sapatos deixados e abandonados por pessoas que jamais puderam voltar para buscá-los. Estão lá a relatar até onde podemos chegar quando perdemos a sensatez, o respeito, a tolerância, a capacidade de diálogo e de construção da paz.

Sim, é verdade que estes fatos ocorreram a algumas décadas, mas também é fato que outros sapatos continuam sendo abandonados de diferentes formas e por diversas razões nas ruas da insegurança, nas favelas dos confrontos, nas escolas sem estruturas mínimas de funcionamento, nas filas dos hospitais sem leitos e sem remédios, nas obras inacabadas, na porta de casa de milhares de brasileiros desempregados e de outros que ainda não conseguem decodificar o código escrito ao seu redor.

Onde estamos empilhando esses sapatos? O que eles estão nos dizendo? O que estamos fazendo para encontrar seus donos na plataforma da história democrática em que estamos?

Percebo milhares de pares nas diferentes estações da cidadania com dificuldade de compreensão dessas realidades, vivendo uma espera ansiosa, raivosa e com doses de inflexibilidade.

Paralisados nessa emoção, não estão percebendo que o presente passa nos trilhos clamando por reflexões mais profundas.

A sensação de divisão dos pares é tão nítida que perdemos o senso do todo e nos encaixotamos de acordo com o lado, esquerdo ou direito, como se fosse possível andarmos assim pela vida.

Ainda não entendemos que o futuro não nos trará um pé de sapato na cor e modelo que desejamos. Ao contrário, seremos nós mesmos, uns com os outros, reaprendendo a caminhar juntos, lado a lado, o pé direito com o pé esquerdo. Ou o pé esquerdo com o pé direito, tanto faz. 

Amanhã, teremos que encontrar meios de seguirmos adiante na cadência conciliatória da democracia, capazes de deixarmos para trás o que ainda houver de precário em nós.

Está em nossas mãos a responsabilidade de construirmos juntos a plataforma do futuro sendo cidadãos melhores, muito melhores do que já fomos antes.

De volta à estação, alguém pega pé de sapato e a vida segue em frente…

Fonte: O livre

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